Joseph
Ratzinger
O que vem a ser isto, a morte? E o que acontece
quando alguém morre, quando o destino da morte o leva? Todos nós temos de
admitir certo embaraço diante dessas perguntas. Ninguém sabe ao certo o que é,
porque nós todos vivemos do lado de cá da morte, de modo que não conhecemos a
experiência da morte. Mas talvez seja possível tentar uma aproximação partindo
outra vez da exclamação de Jesus na cruz, - "Meu Deus, meu Deus porque
me abandonaste"? Mc 15,34 -, na qual encontramos a essência daquilo
que quer dizer descida de Jesus e participação na morte do ser humano.
Nessa última oração de Jesus manifesta-se, como já
aconteceu durante a cena no horto das oliveiras, não uma dor física e sim a
solidão radical, o abandono total, que é a essência mais profunda de sua Paixão.
É a manifestação do abismo de solidão humana em geral, do ser humano que em seu
íntimo está sozinho. Essa solidão, que costuma ser encoberta de várias
maneiras, é a verdadeira situação do ser humano e assinala, ao mesmo tempo, a
sua grade contradição, por que ele não pode ficar só, ele precisa do ser dos
outros a seu lado. Por isso, a solidão é o âmbito do medo que nasce da sensação
de abandono de um ser que precisa ser, mas que é expulso para o impossível.
Vamos tentar entender melhor o que foi dito, recorrendo
a um exemplo concreto. Se uma criança tiver de atravessar uma floresta durante
uma noite escura sentirá medo, por mais que se tenha explicado a ela que não há
o que temer. No momento em que ela estiver sozinha na escuridão, vivenciando
com toda a intensidade a sensação de solidão, surgirá o medo, não medo de
alguma coisa, mas o medo em si, o medo inerente à condição humana. O medo de
uma coisa determinada é, no fundo, um medo inócuo que pode ser anulado pela
retirada do respectivo objeto que é a causa do medo. Se alguém tem medo, por
exemplo, de um cachorro bravo, é fácil resolver o caso, prendendo o cachorro a
uma corrente. Estamos falando de um fenômeno muito mais profundo: quando o ser
humano chega a uma solidão extrema, ele passa a sentir um medo que não se
refere a um objeto determinado que poderia ser eliminado, mas o medo da
solidão, o pavor e o abandono do próprio ser, e este não pode ser superado por
uma ato racional.
Vejamos mais um exemplo: se alguém tiver de ficar
sozinho com um morto durante a noite, sentirá certamente algum tipo de
assombro, mesmo que não queira admiti-lo e tente convencer-se racionalmente que
não há motivo para sentir medo. Ele sabe muito bem que o morto não lhe pode
fazer mal algum e que poderia estar até numa situação muito mais perigosa se a
pessoa estivesse viva. Nessas circunstâncias, levanta-se um tipo de medo que
não é medo diante de alguma coisa e sim o assombro da solidão em si, a sensação
de um abandono existencial que o assalta na solidão com o morto.
E como é que esse medo pode ser superado quando a
prova de sua inocuidade cai no vazio? A criança perderá o seu medo no momento
em que uma mão se oferecer para guiá-la e uma voz que fala com ela, no momento,
portanto, em que a criança viver a experiência da presença de um ser humano
amoroso. Mesmo aquele que estiver em companhia de um morto deixará de sentir um
assombro de medo quando houver alguém junto dele, de modo que sinta a
proximidade de um tu. Na superação do medo se revela a sua natureza mais intrínseca,
ou seja, o medo da solidão, que é o medo de um ser que só pode viver junto dos
outros. O medo essencial do ser humano não pode ser superado pelos argumentos
da razão e sim pela presença de alguém que ama.
Devemos aprofundar ainda mais a nossa pergunta. Se
existisse uma solidão em que nenhuma palavra de um outro pudesse penetrar para
transformá-la; se houvesse uma sensação de abandono tão profundo que nenhum tu
seria capaz de chegar até ele, então estaríamos diante da solidão e do assombro
verdadeiro e total, aquilo que a teologia chama de "inferno". A
partir dessa situação podemos definir exatamente o significado desse termo: ele
designa uma solidão em que o amor já não penetra e que representa, por si
mesmo, o abandono propriamente da existência. Quem não se lembraria nesse
contexto dos poetas e filósofos de nosso tempo, para os quais qualquer encontro
entre os seres humanos é sempre apenas superficial, de modo que ninguém seria
capaz de alcançar o íntimo real do outro; todo encontro, por mais bonito que
pareça, serviria apenas para anestesiar a ferida incurável da solidão. No mais
profundo de nosso ser moraria, portanto, o inferno, o desespero - a solidão tão
inelutável quanto terrível.
É sabido que Sartre construiu a sua antropologia
justamente sobre essa idéia. E até mesmo um poeta aparentemente tão
conciliatório e sereno como Hermann Hesse não esconde, no fundo, uma percepção
semelhante:
"Como é estranho caminhar na neblina"
Viver é solidão.
Ninguém conhece o outro,
Estamos todos sós!"
Realmente, existe, com certeza, uma noite em cuja
solidão nenhuma se faz ouvir; existe uma porta pela qual podemos passar
solitários: a hora da morte. Todo medo do mundo é, em última análise, o medo
dessa solidão. É nessa linha de pensamento que se deve procurar a explicação
porque o Antigo Testamento só usa uma palavra para falar de inferno e
da morte, a palavra sheol: para ele, ambos são fundamentalmente
idênticos. A morte é a solidão por excelência. E a solidão em que o amor não
conhece penetrar é o inferno.
Voltamos, assim, ao nosso ponto de partida, ao
artigo da fé que fala da descida os infernos. Podemos dizer, então, que Jesus
atravessou a porta de nossa solidão extrema quando, na sua Paixão, afundou no
abismo de nossa sensação de abandono. Onde já não se faz ouvir nenhuma voz, lá
está Ele. Com isso, o inferno está vencido, ou melhor: a morte, morte que antes
era o inferno, não existe mais. Morte e inferno deixaram de ser a mesma coisa,
porque em meio à morte passou a existir vida, porque agora o amor mora em seu
meio.
O único inferno que continua existindo é o
fechamento voluntário de si próprio ou, como diz a Bíblia, a segunda morte (ver
p. ex. Ap 20,14). A morte, porém, já não é o caminho para a solidão gélida,
pois as portas do sheol estão abertas. Penso que é possível entender
nessa perspectiva também as imagens dos Padres da Igreja que, à primeira vista,
parecem tão mitológicas, a saber, as imagens que falam em buscar os mortos nas
profundezas e em abrir os portões; torna-se compreensível até mesmo o texto
aparentemente tão tímido do evangelho de Mateus em que se lê que os túmulos de
muitos santos já falecidos ressuscitaram (Mt 27,52). A porta da morte está escancarada
desde que a vida, o amor, passou a habitar na morte...
Joseph Ratzinger* - Papa Emérito Bento XVI - em Introdução ao Cristianismo
- p. 220, 221, 222
*Este texto foi escrito por Joseph Ratzinger
antes de sua ordenação episcopal.
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