por G.K. Chesterton
“... a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as
épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a
furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.”
Último e mais importante: é exatamente isso que explica o
que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do
cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras sobre pequenos pontos de
teologia, os terremotos de emoção envolvendo um gesto ou uma palavra. Era apenas uma questão de um centímetro; mas
um centímetro é tudo quando você está equilibrando.
A Igreja não poderia se der ao luxo de oscilar um milímetro
em alguns pontos, se quisesse continuar seu grande e ousado experimento do equilíbrio
irregular. Assim que se permitisse que
uma idéia perdesse um pouco de sua força, alguma outra idéia ganharia força
demais. O que o pastor cristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas sim
uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vorazes doutrinas, cada uma
delas forte o suficiente para transformar-se numa falsa religião e devastar o
mundo.
Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéias
perigosas; ela foi uma domadora de leões.
A idéia do nascimento por meio do Espírito Santo, da morte de um ser
divino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das profecias — qualquer um
pode ver que são idéias que precisam apenas de um toque para transformar-se em algo
blasfemo ou feroz. Os artífices do
Mediterrâneo deixaram que o menor elo se partisse, e o leão do pessimismo
ancestral rompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Dessas
compensações teológicas devo falar mais adiante. Aqui basta observar que se
algum pequeno erro fosse cometido na doutrina, enormes disparates poderiam ser
cometidos na felicidade humana.
Uma frase formulada erroneamente acerca da natureza do
simbolismo teria quebrado todas as melhores estátuas da Europa. Um deslize nas
definições poderia parar todas as danças; poderia secar todas as árvores de
Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas tinham de ser definidas dentro
de rigorosos limites, até mesmo para que o homem pudesse desfrutar de liberdades
humanas gerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outro motivo para
que o mundo pudesse ficar despreocupado.
Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia. As pessoas adquiriram o tolo costume de falar
de ortodoxia como algo pesado, enfadonho e seguro. Nunca houve nada tão perigoso ou tão
estimulante como a ortodoxia. Ela foi à sensatez,
e ser sensato é mais dramático que ser louco.
Ela foi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em louca disparada,
parecendo abaixar-se para este lado, depois para aquele, mas em cada atitude mantendo
a graça de uma escultura e a precisão da aritmética.
A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e velozmente
com qualquer cavalo de batalha; no
entanto, é totalmente
anti-histórico dizer que
ela apenas cometeu loucuras apegando-se
a uma única idéia, como um fanatismo vulgar. Ela curvou-se para a
esquerda e para a direita, na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos.
Num dado momento ela abandonou o enorme vulto do arianismo,
apoiado por todos os poderes deste mundo para fazer o cristianismo mundano
demais. No instante seguinte ela estava se curvando para evitar o orientalismo,
que o teria espiritualizado demais. A Igreja ortodoxa nunca tomou a rota fácil ou
aceitou as convenções; a Igreja ortodoxa nunca foi respeitável. Teria sido mais
fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos. Teria sido mais fácil, durante o
calvinista século XVII, cair no abismo infinito da predestinação. E fácil ser
louco; é fácil ser herege. E sempre fácil deixar que cada época tenha a sua
cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. E sempre fácil ser um
modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas
explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois
de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria
sido de fato simples.
É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para
levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos
modismos, do agnosticismo à Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem
graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha
visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas
e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.
G.K. Chesterton
– Ortodoxia, pg. 166 a
168 - Ed. Mundo Cristão
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