terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A furiosa verdade



por G.K. Chesterton

“... a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.”

 Último e mais importante: é exatamente isso que explica o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras sobre pequenos pontos de teologia, os terremotos de emoção envolvendo um gesto ou uma palavra.  Era apenas uma questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo quando você está equilibrando.

A Igreja não poderia se der ao luxo de oscilar um milímetro em alguns pontos, se quisesse continuar seu grande e ousado experimento do equilíbrio irregular.  Assim que se permitisse que uma idéia perdesse um pouco de sua força, alguma outra idéia ganharia força demais. O que o pastor cristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas sim uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vorazes doutrinas, cada uma delas forte o suficiente para transformar-se numa falsa religião e devastar o mundo.

Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéias perigosas; ela foi uma domadora de leões.  A idéia do nascimento por meio do Espírito Santo, da morte de um ser divino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das profecias — qualquer um pode ver que são idéias que precisam apenas de um toque para transformar-se em algo blasfemo ou feroz.  Os artífices do Mediterrâneo deixaram que o menor elo se partisse, e o leão do pessimismo ancestral rompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Dessas compensações teológicas devo falar mais adiante. Aqui basta observar que se algum pequeno erro fosse cometido na doutrina, enormes disparates poderiam ser cometidos na felicidade humana.

Uma frase formulada erroneamente acerca da natureza do simbolismo teria quebrado todas as melhores estátuas da Europa. Um deslize nas definições poderia parar todas as danças; poderia secar todas as árvores de Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas tinham de ser definidas dentro de rigorosos limites, até mesmo para que o homem pudesse desfrutar de liberdades humanas gerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outro motivo para que o mundo pudesse ficar despreocupado.

Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia.  As pessoas adquiriram o tolo costume de falar de ortodoxia como algo pesado, enfadonho e seguro.  Nunca houve nada tão perigoso ou tão estimulante como a ortodoxia.  Ela foi à sensatez, e ser sensato é mais dramático que ser louco.  Ela foi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em louca disparada, parecendo abaixar-se para este lado, depois para aquele, mas em cada atitude mantendo a graça de uma escultura e a precisão da aritmética.

A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e velozmente com qualquer cavalo de  batalha;  no  entanto,  é  totalmente  anti-histórico  dizer  que  ela  apenas  cometeu loucuras  apegando-se  a uma única idéia, como um fanatismo vulgar. Ela curvou-se para a esquerda e para a direita, na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos.

Num dado momento ela abandonou o enorme vulto do arianismo, apoiado por todos os poderes deste mundo para fazer o cristianismo mundano demais. No instante seguinte ela estava se curvando para evitar o orientalismo, que o teria espiritualizado demais. A Igreja ortodoxa nunca tomou a rota fácil ou aceitou as convenções; a Igreja ortodoxa nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos. Teria sido mais fácil, durante o calvinista século XVII, cair no abismo infinito da predestinação. E fácil ser louco; é fácil ser herege. E sempre fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. E sempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismo à Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas.  Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.

G.K. Chesterton – Ortodoxia, pg. 166 a 168 - Ed. Mundo Cristão

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